A VITÓRIA DO PÉ-FRIO


Carlos Queiroz, diz-se, é um pé-frio. É um homem trabalhador, metódico e pensa o futebol. Não o vive por dentro, com toda aquela magia, com toda a paixão, não deixa que o coração se sobreponha à razão. Não é como Maradona, El Pibe, que mantém o espírito guerreiro e a genica dos relvados no banco. Queiroz é alguém que estuda o futebol, não o executa. Esse papel, o vedetismo, está destinado aos jogadores, os verdadeiros protagonistas, a quem mais deve sobressair. Pelos clubes por onde passou, Carlos Queiroz não teve muita sorte. Começou a ter de ser considerado pé-frio, alguém que carrega o azar consigo. Houve, até, quem insistisse no seu papel de professor, como forma depreciativa, para demonstrar que apenas conseguia resultados, tal como no início da década de noventa, com miúdos. Chegava aos graúdos e nicles batatóides. Contra o estigma lutar, lutar.

Sempre gostei de Carlos Queiroz. Não sei muito bem porquê, mas a verdade é que aprendi a apreciá-lo, a vê-lo ao lado de Alex Ferguson, ajudando e crescendo, preparando caminho para saltar para a ribalta. Queiroz soube, depois de experiências mal-sucedidas, ter humildade suficiente para ser adjunto. Era adjunto de Ferguson, um dos melhores treinadores mundiais e num clube invejável, sim, mas muitos, não duvidem, recusariam depois de terem carreira construída. Até a porta da selecção se reabrir. A saída de Scolari da selecção nacional fechou um ciclo e começou outro. Carlos Queiroz quis voltar a ser o líder de uma equipa, Gilberto Madaíl quis, de novo, o professor para reconstruir a selecção portuguesa. A Geração de Ouro, desfalcada com os anos, chegou ao fim após o Euro 2008, com a saída de Pauleta. Queiroz entrou recuperar um trabalho que deixara a meio, a meados de noventa. Com experiência e conhecimento acumulados.

Essa minha admiração por Carlos Queiroz não me leva a que aceite todas as suas opções. Nada disso. Muitas vezes erra. Como todos. Na fase de apuramento, e no próprio jogo de abertura do Mundial 2010, Queiroz errou. Para o jogo com a Coreia do Norte, ontem, foi bem claro na antevisão: tudo ou nada, matar ou morrer, ganhar ou deixar o comboio para os oitavos-de-final da competição. O adversário é frágil, não tem expressão, é uma equipa ingénua. Contudo, deixara boas indicações com o Brasil e mostrara que, afinal, não seria assim tão fácil. Carlos Queiroz deixou o conservadorismo, a distância, a frieza. Encarou o jogo, sentiu a sua importância e arriscou. Fez o que tinha a fazer. No momento que tinha que o fazer. Lançou Tiago, Simão, Hugo Almeida e Miguel. Ganhou a toda a linha. Confesso que me deu um gostinho especial ter visto Queiroz, sem a capa de professor exigente ou "pé-frio" escrito na testa em letras garrafais, saltar, exuberante, festejando os golos. A sério que gostei.

A Coreia do Norte é, já se disse, uma equipa demasiado frágil para um Campeonato do Mundo. Mas está lá. Também a Albânia, que Portugal defrontou na fase de apuramento, o é. O futebol, muitas vezes, coloca os pequenos por cima dos grandes. Tem esse encanto. Portugal corria o risco de ser supreendido. A ansiedade, a pressão, o limbo em que estava poderiam ter sido fatais. Os primeiros minutos não foram bons para os portugueses, a Coreia quis mostrar-se. Até perder o Norte, até Portugal a obrigar a perder-se por completo: jogando com intensidade, com os olhos na baliza adversária, com gula. Chegou ao terceiro golo e poderia ter, com misericórdia dos norte-coreanos, enrolado a manta. Não o fez. Foi ambiciosa, quis sempre mais, percebeu que os golos marcados poderão ser fundamentais. A selecção portuguesa chegou aos sete, o número perfeito, como poderia ter chegado aos dez. Reabilitou alguns milhões de alminhas pessimistas. A moral está no limite. Resta manter os pés no chão. E acreditar.

4 Response to "A VITÓRIA DO PÉ-FRIO"

  1. Anónimo quarta-feira, junho 23, 2010
    Não gosto do Queiroz, mas enquanto continuar a cumprir com os objectivos, é o meu treinador...
  2. André quarta-feira, junho 23, 2010
    O "Carlos" que chegue pelo menos aos quartos de final e depois falámos ;)
  3. Anónimo quarta-feira, junho 23, 2010
    Queiroz, Jesualdo, são treinadores que não apaixonam os adeptos, mas são eficientes e conseguem resultados, sofridos, mas conseguem.
    Boa crónica!
  4. Jorge Dias quarta-feira, junho 23, 2010
    Eu acho que qualquer adepto gosta de ver um treinador apaixonado, vibrante, a festejar que nem um louco as suas conquistas, mas a verdade é que os calculistas e metódicos são aqueles que alcançam o topo dos topos.
    Se existe um misto de tudo isto? Existe! José Mourinho, mas esse é único, é um predestinado!